Jornal Público Opinião Por António Carlos dos Santos
O memorando de entendimento contém um conjunto de medidas do lado da receita e da despesa que, independentemente dos resultados eleitorais, constituirá o essencial do programa do futuro Governo. É importante que seja discutido.
Do lado dos impostos, este programa pretende atingir dois objectivos: obter receita e promover a competitividade. Todos os impostos aumentam, nomeadamente através da redução de benefícios e deduções, não sendo claro se aumentam transitoriamente ou se o alargamento da base tributária será mais tarde compensado por reduções de taxas. A receita fiscal decorrente das novas medidas fiscais estimada para o período 2012-2013 é de 3600 milhões de euros. Destes, só 175 milhões estão previstos (e só em 2012) como resultado do combate à fraude e evasão, quando, em 2009, a economia paralela ascendia a 19,5% do PIB. Não estão previstas medidas legislativas desejáveis como a introdução da facturação electrónica e a criação de um novo regime para os pequenos sujeitos passivos que substitua o escândalo de haver mais de 550.000 "contribuintes" isentos por não atingirem 10.000 euros de volume de negócios anuais. As propostas para reforma da ineficiente justiça tributária (elemento central para a competitividade) são tímidas, ignorando muitas das soluções avançadas pelo Grupo de Política Fiscal.
Quanto à promoção da competitividade, o memorando é contraditório. Assim, aponta para a redução dos custos fiscais do trabalho para os empregadores, uma velha proposta da Comissão Europeia que visa baixar a Taxa Social Única (TSU). Mas, ao mesmo tempo, pretende abolir medidas em sede de IRC, como o regime da interioridade ou a taxa de 12,5%, que foram criadas para fomentar a competitividade de regiões e empresas, em especial as PME. Além disso, prevê um aumento das taxas de IVA sobre a electricidade e o gás e a aplicação de uma directiva europeia sobre a electricidade, medidas que não favorecem a competitividade.
Para não pôr em risco a sustentabilidade da Segurança Social, a redução da TSU será financeiramente neutra, isto é, como tudo indica, compensada pela aplicação da taxa normal de IVA a bens e serviços hoje sujeitos a taxas reduzidas. Ora, o efeito sobre a competitividade provocado por uma redução generalizada da TSU do lado do empregador é muito duvidoso. Esta tanto favorece empresas que estão no sector exportador como as que não estão, tanto abrange empresas que dela precisam, como empresas que agiriam do mesmo modo se não houvesse redução da TSU. A baixa generalizada da TSU arrisca-se assim a traduzir-se num significativo desperdício de dinheiros públicos, tanto mais que é relativamente diminuto o custo do factor trabalho nas nossas exportações. Acresce que ninguém pode garantir que uma redução da TSU se traduza numa real baixa de preços e não numa ajuda ao funcionamento de muitas empresas.
Para ter algum impacto, tal redução deveria rondar, no mínimo, 4 pontos percentuais (há já quem fale de 8 ou 10 pp.), isto é, 1600 milhões de euros, quase metade da receita fiscal extra a arrecadar em 2012 e 2013. Isto representaria uma importante transferência de rendimentos de pensionistas, beneficiários de transferências sociais, consumidores finais, etc., para os empregadores. Havendo margem, não seria mais útil aplicar esses 1600 milhões de forma selectiva em medidas de apoio ao emprego, à inovação e desenvolvimento, à energia e à formação, áreas que não põem problemas em sede de auxílios de Estado e que fomentam a competitividade e a modernização das empresas?
Mas o memorando tem mais incongruências: aí se prevê a eliminação da isenção de IVA para os serviços postais universais, medida que contraria o actual direito da União Europeia; aí se prevê ainda a redução do reporte de prejuízos em sede de IRC para 3 anos, ao arrepio da solução contida na proposta de directiva da Comissão de 16 de Março último relativa à matéria colectável consolidada comum onde o reporte de prejuízos para a frente não tem limite temporal.
Outros aspectos mereceriam comentários do ponto de vista da justiça (como alargar a base tributária sem prejudicar os mais débeis?) ou da eficiência e da eficácia da máquina fiscal (terá êxito a fusão abrupta das administrações tributárias quando em 12 anos falharam as tentativas de uma gestão partilhada de serviços?).
Em síntese: na parte fiscal, o memorando é um documento tecnocrático e feito à pressa. Nem a tecnocracia é boa decisora, nem a pressa boa conselheira...
A base política e social de apoio a um texto pouco debatido é necessariamente frágil. A forma crispada como decorreu a campanha eleitoral e a quase ausência de análise séria do memorando não lhe auguram bom futuro.
Professor da UAL, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais do Governo de António Guterres